'Éramos unidos. Íamos juntos ao cinema, ao teatro e depois sentávamos para tomar um chope e conversar sobre o que tínhamos acabado de assistir' - Sócrates

Recordo bem os idos de 1982, quando era um molecote de 5 anos de idade. Lembro de meu tio Nando, santista fanático, passando em minha casa na saudosa Vila Honório com sua super Caloi 10 dourada - cheia de marchas - para assistirmos os jogos no campo do 7 de setembro. Lá, era o barranco que acomodava os amantes do futebol de várzea andradense e que, vez por outra, recebia a presença de boleiros do sul de Minas e do leste paulista.
Lembro das brigas recorrentes no campo e das minhas discussões acaloradas - eu, um nascente democrata corintiano - com meu tio, então um saudosista do Santos de Pelé. Tudo em prol da paixão pelo futebol.
É. Foi nesta época, em que nem sabia o que era democracia, que vi nascer um time lá na fazendinha que me fez entender que futebol é bem mais que um esporte, ainda mais quando se trata do assunto no Brasil.
Vendo tudo aquilo, percebi que o Corinthians era mais que simplesmente um clube de futebol. O Corinthians representava um sonho de liberdade, um grito preso na garganta, a voz daqueles que viviam havia quase 15 anos na opressão, a parte de uma luta que não terminaria ali. Uma paixão pela vida e pelo país, que seria para sempre inesquecível.
A época era de luta pelo fim da Ditadura Militar e a Democracia Corinthiana, comandada pelo doutor Sócrates, empunhava a bandeira nos estádios, clamando pela participação popular na vida política do país. E eu, mesmo sem saber ao certo o que era tudo aquilo, me apaixonava cada vez mais por aquele time.

'Conseguimos provar ao público que qualquer sociedade pode e deve ser igualitária. Que podemos abrir mão dos nosso poderes e privilégios em prol do bem comum. Que devemos estimular a que todos se reconheçam e que possam participar ativamente dos desígnios de suas vidas. Que a opressão não é imbatível. Que a união é fundamental para ultrapassar obstáculos indigestos. Que uma comunidade só frutifica se respeitar a vontade da maioria de seus integrantes. Que é possivel se dar as mãos'.
Em 1990, após a fatídica derrota da seleção de Lazaroni para a Argentina logo nas oitavas-de-final da Copa da Itália, comecei a descobrir, entre lágrimas, o outro lado da moeda. Dias depois da eliminação do Brasil, lembro bem de um documentário exibido pela TV Cultura que mostrava a história das copas na era João Havelange.
Aos 13 anos de idade, vi que o futebol tornava-se mais um agente de manipulação das massas e de troca de favores entre os donos do poder mundial. O futebol não era mais paixão; virara negócio. E onde existe lucro - inclusive político -, não deve haver paixão. E para um torcedor e uma torcida apaixonada é difícil reconhecer isto.
A ascenção de Alberto Dualib e a parceria com Boris Berezovsky, o chefão da máfia do petróleo da antiga União Soviética decretou o fim do Corinthians paixão e o ingresso do clube em uma fase 'negócios', declaradamente escusos. Mas negócio é para quem é de negócio, não para quem é de paixão. E o Corinthians sempre foi e sempre será uma paixão. E deu no que deu.

O saudosismo santista da era pelé em meu tio, agora reflete-se nos corações corintianos, que sempre preferiram um tempo onde se usava Topper e não Nike, se assistiam jogos pela TV Cultura e não pela Globo, se tinha um presidente apaixonado pelo time e não um bandido. Um tempo onde o futebol era paixão e não negócio.
Quando se discutia futebol no boteko e não em salas de reuniões sombrias no centro de Londres.
Imagens
- Democracia Corintiana entra em campo em 1982 com a faixa 'Ganhar ou perder: sempre com Democracia'
- O time da Democracia, em 1982. Em pé: Solito, Sócrates, Ataliba, Casagrande, Zenon e Biro-Biro. Agachados: Mauro, Daniel, Gonzáles, Alfinete, Paulinho e Wladimir.
Crédito: Todopoderosotimao.com
- Vicente Matheus na final de 1977 contra a Ponte Preta
Crédito: Reprodução/Istoé Online